Texto da reforma do Código Civil cria obstáculos para elevação de indenizações
No mês passado, o advogado Flávio Tartuce, relator-geral da comissão que elaborou o anteprojeto de reforma do Código Civil, afirmou em evento no Rio de Janeiro que as regras propostas pelo grupo para indenizações buscam evitar violações de direitos, graças a uma nova sanção pedagógica. Os civilistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico sobre o tema consideram que a intenção é boa, mas acreditam que o texto sugerido pode impedir esse objetivo e ainda gerar insegurança.
Anteprojeto traz novos parâmetros para indenizações e inclui na lei a possibilidade de uma sanção pedagógica
O anteprojeto prevê que o juiz, ao quantificar o dano moral, deve levar em conta critérios como o impacto em “projetos de vida relativos ao trabalho, lazer, âmbito familiar ou social”, o “grau de reversibilidade do dano” e o “grau de ofensa ao bem jurídico”.
Outro acréscimo às regras atuais é a possibilidade de inclusão de uma “sanção de caráter pedagógico” — conhecida internacionalmente como punitive damages — em casos “de especial gravidade” nos quais houver “dolo ou culpa grave”, além de situações de reincidência.
Essa indenização deve ser “proporcional à gravidade da falta” e pode ser até quatro vezes maior do que o valor estipulado para os danos morais. Tal aumento deve levar em conta a reiteração, eventuais condenações ou multas administrativas anteriores pela mesma conduta e a condição econômica do ofensor.
O Código Civil atual, de 2002, não traz parâmetros expressos, objetivos e bem definidos para quantificar o dano moral. Apenas diz que a indenização é medida pela “extensão do dano”. Assim, o critério usado pelos juízes é basicamente o “grau de sofrimento psicológico”, como aponta o advogado Leonardo Amarante, especialista em responsabilidade civil.
A indenização pedagógica, ou de caráter punitivo, também não existe na lei atualmente. Daniel Amaral Carnaúba, professor de Direito Civil da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), explica que isso costuma ser contornado pela jurisprudência por meio do dano moral.
Segundo ele, os magistrados aproveitam a falta de parâmetros rigorosos de quantificação para estipular indenizações por danos morais “de tal forma que sirvam como punição ao responsável”. Ou seja, “condutas mais reprováveis são punidas com condenações em danos morais mais elevados”.
Forma pedagógica
Giuliana Schunck, sócia do escritório Trench Rossi Watanabe que atua com contencioso cível, diz que os danos morais são usados de forma pedagógica, por exemplo, quando instituições financeiras são condenadas a pagar indenizações devido a fraudes praticadas por terceiros.
No evento da Fundação Getulio Vargas (FGV) do qual participou, Flávio Tartuce argumentou que “hoje é mais barato para uma empresa descumprir contratos, violar direitos e pagar indenizações do que seguir as regras”.
Giuliana concorda com essa afirmação, “especialmente quando se trata de grandes empresas com alta capacidade financeira”.
Ela também corrobora a visão de Tartuce de que o sistema de responsabilidade civil vigente no Brasil é voltado à reparação do dano, e não à punição do ofensor. O anteprojeto do Código Civil acrescenta um novo objetivo à indenização: desencorajar a conduta.
O caráter pedagógico ou punitivo da indenização por danos morais já é aceito pela doutrina jurídica e até aplicado pela jurisprudência em certos casos, mas Amarante indica que, na prática, esse princípio costuma ser afastado. Com isso, são adotados “valores irrisórios” para as sanções.
O anteprojeto inclui a sanção pedagógica na lei de forma expressa. Dessa forma, “tenta superar”, segundo Carnaúba, o método “pouco ortodoxo” de elevação do valor dos danos morais como forma de atingir o caráter punitivo.
De acordo com ele, a indenização pedagógica poderia ser aplicada, por exemplo, em casos de instituições financeiras que concedem empréstimos consignados sem consentimento do aposentado ou pensionista. Nesse caso, haveria dolo.
Já a culpa grave seria identificada em casos como os rompimentos das barragens de Mariana (MG) e Brumadinho (MG) — desastres ambientais causados pela falta de adoção dos padrões de segurança necessários por parte de mineradoras. Assim, a sanção pedagógica também seria aplicável.
Possíveis problemas
O professor da Unifesp explica que os magistrados, quando usam o dano moral “com propósitos pedagógicos”, recorrem a critérios como “o grau de culpa do responsável, sua capacidade econômica, a reincidência e a reprovabilidade de sua conduta, entre outros”.
Na sua avaliação, o anteprojeto se aproxima desses mesmos critérios. Mas o texto também busca “moderar o valor da sanção” ao determinar que a quantificação deve levar em conta condenações anteriores pelo mesmo fato. O teto equivalente ao quádruplo do valor do dano moral também contribui para isso.
A principal crítica de Carnaúba ao anteprojeto é a opção por vincular o valor da indenização pedagógica ao dano moral sofrido pela vítima. Segundo ele, isso pode dificultar o objetivo de desestimular condutas ilícitas.
“Muitos ilícitos lucrativos — como aqueles cometidos em relações contratuais — não necessariamente geram danos extrapatrimoniais”, destaca ele. “Nesse tipo de situação, a sanção pedagógica, em tese, seria inaplicável.”
Assim, a solução mais adequada, na sua opinião, seria desvincular a sanção pedagógica dos danos morais e buscar uma limitação mais coerente, que leve em conta, por exemplo, também os danos materiais causados pela conduta.
Amarante vê com bons olhos a maior parte dos parâmetros traçados pelo anteprojeto, pois eles dão maior respaldo a aumentos das indenizações.
“É sempre relevante que haja sua consagração junto ao diploma legal, a fim de afastar ao máximo divergências jurisprudenciais a respeito”, assinala o advogado. O mesmo vale para a sanção pedagógica.
Opção equivocada
Por outro lado, ele considera equivocada a opção da comissão de permitir a redução da indenização. Um trecho do anteprojeto diz que isso pode ocorrer “se houver excessiva desproporção entre a conduta praticada pelo agente e a extensão do dano dela decorrente” ou se a indenização “privar do necessário o ofensor ou as pessoas que dele dependam”.
Segundo Amarante, essa previsão “sempre dará respaldo a uma redução drástica do valor indenizatório, sob motivação nem sempre coerente” — muitas vezes arbitrária, com a justificativa de que a conduta foi “muito simplória” em relação ao dano provocado.
O advogado afirma que essa previsão pode deixar a vítima “sub-reparada por duas razões que absolutamente não lhe dizem respeito” e ainda dá uma “proteção excessiva ao ofensor”, que “se beneficia de sua própria torpeza”.
Para ele, isso impede a reparação integral do dano (garantida pela Constituição) e viola um princípio clássico do Direito Civil: ninguém pode tirar proveito de um prejuízo que propriamente causou.
Giuliana Schunk concorda que o anteprojeto evita que empresas com maior capacidade financeira prefiram pagar indenizações a seguir as regras, mas ela sugere restrições mais específicas para permitir uma aplicação eficaz das propostas.
Um exemplo seria detalhar melhor os parâmetros para aplicação da sanção pedagógica em casos de culpa grave. “Deixar a aplicação do dispositivo exclusivamente à interpretação discricionária dos tribunais pode resultar em insegurança jurídica”, opina ela.
A advogada também acredita que é possível elaborar melhor os parâmetros para destinação dos valores dessa sanção. “O projeto deixou o critério exclusivamente aos tribunais, que poderão ter posicionamentos variáveis a depender do caso concreto e das partes envolvidas, o que pode representar, mais uma vez, insegurança jurídica.”
Fonte: Conjur