Mais uma ameaça ao direito dos credores
Há anos os poderes públicos resistem ao cumprimento de decisões judiciais, postura que coloca o Estado de direito de joelhos e de cabeça baixa. Precatórios deixaram de ser pagos por anos e o Congresso Nacional foi solidário com a iniciativa, promulgando uma emenda constitucional em 2000 para parcelar em dez anos o pagamento de dívidas que já deveriam estar liquidadas e das que vierem a ser objeto de condenações em ações judiciais iniciadas até 1999. Até a generosa cortesia com chapéu alheio é usufruída além do limite e as parcelas anuais não são pagas pontualmente, dissipando o fiapo de esperança dos mais crédulos de que o favor constitucional ao menos resgataria a responsabilidade estatal.
Os credores da Fazenda pública por força de decisões judiciais, que suportaram e vêm suportando calotes oficiais e outros sem respaldo nenhum, são agora ameaçados com mais outro. Está tramitando no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 12, de 2006, que cria um regime especial para o pagamento de precatórios expedidos contra as Fazendas públicas, concebida pelo ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Nelson Jobim, e apresentada pelo presidente do Senado, senador Renan Calheiros.
Embora formalmente a PEC introduza normas provisórias sobre a matéria (insere o artigo 95 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), elas têm vocação à perenidade. Pelos critérios nela definidos, o município de São Paulo, só para dar um exemplo, levará 40 anos para pagar os precatórios já expedidos, que se acumularão com os futuros. O mais provável é que as regras tornem-se definitivas, incluídas entre as mais fixas da Constituição Federal, e que o pagamento dos precatórios jamais seja colocado em dia.
De acordo com PEC, a União, os Estados e o Distrito Federal deverão destinar para o pagamento de precatórios em cada ano a importância correspondente a no mínimo 3% de suas respectivas despesas primárias líquidas do exercício anterior. No caso dos municípios, esse limite é reduzido para 1,5%. Dessas importâncias, 70% serão destinados ao pagamento de precatórios por meio de leilão, nos quais os credores deverão oferecer descontos sobre seus créditos. Os restantes 30% devem ser empregados no pagamento de precatórios de acordo com ordem crescente de valores, e não mais pela ordem cronológica de expedição.
Diversos juristas já apontaram a inconstitucionalidade da proposta por violação ao direito adquirido, à coisa julgada e ao princípio da segurança jurídica. A questão, contudo, é mais ampla: a proposta é inválida mesmo para os futuros precatórios.
É inviável alterar a Constituição para obrigar os particulares a oferecer descontos sobre seus créditos
A Constituição Federal prescreve que normas sobre direitos e garantias individuais não podem ser objeto de emendas. Elas não podem sequer ser objeto de deliberação pelo Congresso, segundo seu artigo 64, parágrafo 4º, inciso IV. Os direitos e garantias individuais são proteções dos particulares contra a atuação do Estado. A Constituição Federal define áreas de liberdade dos particulares, as quais não podem ser afetadas pelo Estado.
Com a criação do Estado de direito, submissão do Estado à ordem jurídica, uma das mais importantes garantias dos particulares é a de que devam ser por ele ressarcidos dos prejuízos experimentados em razão da atuação estatal. Foi longo o caminho percorrido para essa conquista, mas hoje ela está incorporada no texto constitucional como cláusula inalterável - artigo 37, parágrafo 6º. Indenizar significa deixar alguém indene, sem dano (prejuízo). A Constituição, portanto, proíbe que o Estado imponha aos particulares diminuição de seus patrimônios. É evidente o caráter de proteção do particular contra o poder público, que lhe confere natureza de direito e garantia individual, imutável por emenda constitucional.
É juridicamente inviável, portanto, que se altere a Constituição para que os particulares sejam obrigados a oferecer descontos sobre seus créditos como condição de recebimento, suportando prejuízos. Alguém pode pretender argumentar que os credores não são obrigados a participar dos leilões. Aí há dois obstáculos para a proposta. O primeiro é que, sem participação dos credores em leilões, o pagamento de seus créditos ficará para as calendas. Hoje, que a regra é mais rigorosa (sem ser cumprida), os credores já não estão recebendo os precatórios. Imaginem como será a situação quando outros créditos forem pagos antes, em razão de descontos venham a oferecer. O segundo é que nenhum credor pode ser preterido na ordem de pagamento de seu créditos em razão de exercer seu direito constitucional de receber seu crédito integral, sem oferecimento de desconto. A Constituição impõe o pagamento dos precatórios de acordo com a ordem cronológica, e a recusa do credor em oferecer desconto não é motivo legítimo para quebrá-la.
Vale destacar outra conseqüência perniciosa da proposta. Ela abre as portas para a prática de corrupção com conforto e segurança. O administrador público que deixar de pagar dívida legítima remeterá o particular para o longo e tortuoso caminho do Poder Judiciário, cujo fim será o recebimento de precatório depois de décadas e com desconto. Ele terá, então, oportunidade de exigir e obter vantagens generosas contra a oferta do simples cumprimento da lei e pagamento da dívida, sem risco nem aborrecimento; poderá obter benefícios pessoais sem praticar ilegalidade aberta. O mero cumprimento de obrigações de pagamento pelo agente público terá altíssimo valor no mercado paralelo. O ilícito existirá, é claro, que ainda ninguém supõe que corrupção seja conduta legítima, mas ele será sempre de difícil apuração.
A questão dos precatórios é séria e complexa, mas é preciso tratá-la com intransigente respeito aos direitos individuais. A PEC nº 12 vai em sentido contrário.
* Benedicto Porto Neto é advogado e sócio titular do escritório Porto Advogados e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público.
Fonte: Valor oline - 18/10/2006