Entidades assistenciais são imunes ao ICMS e ao IPI nas suas compras
A discussão sobre o direito das pessoas imunes ao afastamento dos impostos indiretos quando postas na condição de adquirentes é antiga na doutrina e na jurisprudência, tendo-se desenvolvido tanto em relação à imunidade recíproca quanto em relação à imunidade das entidades assistenciais sem fins lucrativos. Clássicos no tema são os debates no STF entre os ministros Aliomar Baleeiro (pela aplicação da imunidade) e Bilac Pinto (sustentando a posição contrária).
Sendo certo que os entes políticos não raro gozam de isenção de ICMS e IPI nas suas compras, a disputa acabou interessando sobretudo ao terceiro setor. A prevalência ao longo dos anos da tese de Bilac Pinto não impediu a prolação de acórdãos favoráveis aos compradores, alguns até recentes (STF, 2ª Turma, RE 203.755/ES, relator ministro Carlos Velloso, DJ 17/9/1996; STF, 2ª Turma, AI 535.922 AgR/RS, relatora ministra Ellen Gracie, DJe 14/11/2008). Pretendendo encerrar a controvérsia, em 23/2/2017 o Plenário do STF julgou o Tema 342 da repercussão geral, reafirmando a leitura restritiva das imunidades (Pleno, RE 608.872/MG, relator ministro Dias Toffoli, DJe 27/9/2017).
Até então, e também ali, a disputa baseava-se nas premissas invariáveis de que (1) a relação jurídica nos tributos indiretos opera-se entre o vendedor, contribuinte de jure, e o Estado, (2) funcionando o adquirente como mero contribuinte de facto, (3) que paga apenas preço, jamais tributo — balizas confirmadas pela própria ementa do Tema 342 [1]. Era sobre esses pontos de partida inalteráveis que se construíam as rationes decidendi contrapostas de cada uma das correntes: para uma, as imunidades não podiam extrapolar a relação tributária, colhendo pessoa que lhe era estranha (o comprador, que só pagava preço, e não tributo); para a outra, a presunção absoluta de que os tributos indiretos repercutem no preço (base do princípio da não cumulatividade, que dá a um contribuinte crédito pelo tributo devido por seu fornecedor, compensação que não faria sentido à falta da certeza jurídica do repasse), aliada à teleologia das imunidades (reduzir o custo de funcionamento das entidades, para que aumentem a quantidade e a qualidade dos seus serviços), bastaria para superar aquele óbice jurídico-formal, cuja existência de nenhuma forma se negava.
No entanto, menos de um mês depois, em 15/3/2017, ao julgar o Tema 69 da repercussão geral, o STF abandonou aquelas premissas até então constantes, substituindo-as pelos pressupostos jurídicos radicalmente contrários de que (1) a relação jurídica nos tributos indiretos passa-se entre o adquirente — agora posto na condição de contribuinte de jure — e o Estado, (2) funcionando o vendedor como mero depositário, (3) que cobra do primeiro preço e tributo, apropriando-se da primeira parcela e devendo repassar ao Fisco (em dinheiro e em créditos) a segunda, correspondente ao valor destacado na nota (Pleno, RE 574.706/PR, relatora ministra Cármen Lúcia, DJe 2/10/2017). Os votos então proferidos são veementes. Para a Relatora, o ICMS "não constitui receita do contribuinte", visto que "tem como destinatário final a Fazenda Pública, para a qual será transferido" — observe-se: meramente transferido, e não pago em satisfação a uma dívida. Na mesma linha afirmou o ministro Ricardo Lewandowski que a parcela referente ao ICMS é objeto de "simples trânsito contábil, não ingressa no patrimônio da empresa", "é do Estado, sempre será do Estado e terá que um dia ser devolvida ao Estado" — devolvida ao seu titular originário, insista-se. Acrescentou o ministro Celso de Mello que "o valor pertinente ao ICMS é repassado ao Estado-membro (ou ao Distrito Federal), dele não sendo titular a empresa" — mais uma vez a ideia de mero repasse. E arrematou o ministro Marco Aurélio: "muito menos é possível pensar, uma vez que não se tem a relação tributária Estado-União, em transferir, numa ficção jurídica, o que decorrente do ICMS para o contribuinte e vir a onerá-lo". Vale notar: antes, a presunção absoluta era de que o tributo estava embutido no preço pago pelo adquirente; agora, ficção jurídica seria ignorar que o ICMS destacado é tributo devido pelo adquirente, para incluí-lo artificialmente no preço e considerá-lo passível de apropriação pelo vendedor (e de incidência do PIS e da Cofins).
Ante essa nova qualificação jurídica dos fatos, a conclusão pelo afastamento dos tributos indiretos nas compras feitas pelas pessoas imunes impõe-se de forma automática, como agudamente advertiram os ministros Dias Toffoli e Roberto Barroso, os quais — para manter a coerência com a decisão tomada fazia pouco tempo no Tema 342 — votaram vencidos pela incidência das contribuições sobre o imposto estadual. Este último, predicando que as exclusões de um tributo da base de outro devem ser expressas, lembrou que "a própria legislação exclui (...) o IPI e o ICMS substituição tributária" da base de cálculo do PIS/Cofins, "até coerentemente com o que nós decidimos na semana passada de que a imunidade não se estende ao contribuinte de fato; ela se circunscreve ao contribuinte de direito". Ao que o primeiro emendou a pergunta retórica: "se o comerciante ou o prestador de serviço é um mero responsável tributário pela retenção e pelo repasse de um valor devido pelo consumidor, por que, então, há poucos dias, no RE nº 608.872/MG de minha relatoria, não reconhecemos a imunidade para a entidade filantrópica?".
A resposta é inescapável: embora recentíssimo, o precedente do Tema 342 era, naquele momento, deliberadamente superado.
E a decisão não foi isolada, tendo a mesma compreensão prevalecido quase três anos depois, em 18/12/2019, no julgamento do RHC 163.334/SC (Pleno, relator ministro Roberto Barroso, DJe 13.11.2020), quando a corte assentou a tese de que "o contribuinte que deixa de recolher, de forma contumaz e com dolo de apropriação, o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990". Com efeito, a conclusão não se sustenta sem as premissas de que o ICMS é devido ao Estado diretamente pelo comprador (contribuinte de jure), sendo cobrado como tal, e não como preço (ou não caberia falar em apropriação indébita tributária), pelo vendedor, que portanto atua como simples depositário. Aludindo à fixação dessas balizas no Tema 69, anota o ministro Edson Fachin que "soa até mesmo (...) inapropriado falar-se em ICMS próprio" do vendedor, pois "não é objeto de livre disposição e não constitui receita ou faturamento de sua propriedade" — donde concluir que "a ausência de recolhimento não denota tão somente inadimplemento fiscal, mas disposição de recursos de terceiro, aproximando-se de espécie de apropriação tributária". Sem discrepar, crava o ministro Luiz Fux que "o acórdão proferido por esta Corte, no RE 574.706 (...) equiparou o contribuinte a um 'agente arrecadador' do tributo", passível de apropriação. E reitera a ministra Rosa Weber: "logo, a cobrança do ICMS do consumidor final e a posterior omissão de recolhimento dos valores cobrados aos cofres públicos pelo sujeito passivo da obrigação tributária implica, efetivamente, apropriação de valores de terceiros".
Diante dessa nova realidade, é indesviável a conclusão de que a pessoa imune faz jus ao afastamento do ICMS e do IPI nas suas aquisições, por ser — impõe-se aceitar para fins práticos a visão do STF, ainda que com divergência teórica — o seu verdadeiro e único contribuinte de jure. Idêntica conclusão vale para as importações, nas quais não há lugar para a antiga distinção entre contribuinte de fato e de direito, ou para a nova divisão entre contribuinte e agente retentor. Em total subversão da antiga jurisprudência, haverá agora incidência dos impostos sempre que as pessoas imunes atuarem como seus agentes retentores — isto é, como vendedoras de produtos e serviços tributáveis pelo ICMS ou pelo IPI no mercado interno, o que tem a vantagem adicional de garantir a livre concorrência entre aquelas e as empresas lucrativas.
Por fim, cabe observar que esse novo entendimento beneficia inclusive as entidades imunes que tinham contra si coisa julgada na linha do Tema 342. Deveras, a res judicata não visa a "petrificar o tráfego jurídico" [2] ou a "imunizar" a decisão contra fatos supervenientes [3]. Como já registrava Liebman, a imutabilidade dos efeitos da sentença não significa que "fatos sucessivos não possam modificar a situação e as relações entre as partes", pois "nem mesmo a força do julgado pode obviamente impedir que fatos novos produzam consequências" [4] — incluindo-se no conceito de "fatos novos" a alteração das circunstâncias jurídicas que ampararam a prolação da sentença, mormente nas relações jurídicas continuativas. Isso o que, após longa evolução, acabou de decidir o STF nos Temas 881 e 885 da repercussão geral (acórdãos ainda não publicados), sendo oportuno relembrar aqui a observação feita por praticamente todos os ministros de que a cessação dos efeitos futuros da coisa julgada vale tanto a favor do Fisco quanto do particular. Pois que assim seja.
Fonte: Conjur
Por Igor Mauler Santiago e Carolina Schäffer Ferreira Jorge