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Notícias Tributárias

Multa agravada por Medida Provisória não convertida não pode subsistir

Na coluna de hoje pedimos licença para compartilhar reflexões que, embora imediatamente desvinculadas do Direito Tributário, bem podem ter aplicação nesse campo, tão pródigo em medidas provisórias.

A Lei 7.889/89, em sua redação original, previa multa de até 25.000 BTNs para as infrações à legislação industrial e sanitária relativa aos produtos de origem animal (artigo 2°, inciso II). Na carona da infausta Operação Carne Fraca, a MP 772, de 29.03.2017, elevou esse teto em 1.200%, passando-o para R$ 500 mil. Em 09.08.2017, a MP 772 foi revogada pela MP 794. Nenhuma delas foi convertida em lei, tendo ambas sido extintas por decurso de prazo: a primeira em 08.12.2017, e a segunda — embora posterior — em 06.12.2017.

Cuida-se de saber o destino das multas majoradas impostas com base na MP 772. Dado que nem ela nem a MP 794 ensejaram a edição do decreto legislativo referido nos parágrafos 3° e 11 do artigo 62 da Constituição1, uma leitura apressada poderia apontar para a exigibilidade dessas sanções, desde que relativas a fatos ocorridos na vigência do diploma majorador.

Contudo, essa impressão inicial não se sustenta ou, na pior das hipóteses, deve ser mitigada. Iniciemos pela descrição do iter de aplicação da multa, definido no Decreto 9.013/2017, que institui o Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária dos Produtos de Origem Animal (Rispoa):

o fiscal do Serviço de Inspeção dos Produtos Animais (Sipoa), deparando-se com irregularidades, formaliza autuação em que se limita a descrevê-las e abrir prazo para defesa, sem proceder à capitulação legal das condutas e, portanto, sem impor penalidade (artigos 520 a 524);

havendo ou não defesa do autuado, o Sipoa revê a autuação e, tendo-a por procedente, impõe e gradua a multa (artigos 525 e 526);

havendo recurso, e não sendo a decisão reconsiderada pelo Sipoa, aquele será encaminhado ao Departamento de Inspeção dos Produtos de Origem Animal (Dipoa), que decidirá em última instância sobre o valor da penalidade (artigos 527 e 528).

Em conclusão, os julgamentos administrativos são os momentos da efetiva imposição da multa, da aplicação originária da lei ao caso concreto. Tanto assim que a segunda instância administrativa pode agravar o valor arbitrado pela primeira, o que aliás acontece com muita frequência (Lei 9.784/99, artigo 64, parágrafo único).

Em decisão recente, o STF esclareceu o alcance do parágrafo 11 do artigo 62 da Constituição, registrando que este visa a garantir a segurança jurídica do particular que atuou respaldado na medida provisória caduca, mas não vai ao ponto de permitir que esta fundamente atos administrativos posteriores ao fim da sua vigência, mesmo que relativos a fatos ocorridos durante tal período — o que consubstanciaria a prevalência da vontade do Executivo sobre a do Parlamento (Pleno, ADPF 216/DF, Relatora Ministra Cármen Lúcia, DJe 20.03.2020)

Ao invés de a prestigiar, a ultratividade da MP 772 atentaria contra a segurança jurídica. De fato, trata-se de diploma que majorou drasticamente o teto da multa sem fixar nenhum critério para a sua graduação em cada caso concreto. Tudo o que faz o parágrafo 1º do artigo 2º da Lei 7.889/89 — presente desde a redação original do diploma — é fixar os parâmetros para a aplicação da multa máxima2. Mas restou sujeito ao completo alvedrio do administrador, tendo sido disciplinado por simples decreto (insuficiente para atender à segurança jurídica, que exige lei, e incompatível com separação dos Poderes, que proscreve a delegação legislativa externa)3, todo o vasto campo entre uma penalidade simbólica, de caráter pedagógico, e uma mais próxima do elevadíssimo teto fixado.

Quanto ao segundo ponto — impossibilidade de MP não convertida em lei e não disciplinada em decreto legislativo fundar ato administrativo posterior à perda de sua vigência —, as situações versadas no paradigma e na situação ora analisada são similares, sendo a atual até mais grave do que a anterior. De fato, ali se decidiu que pedidos de licença formulados durante a vigência da MP 320/2006 não poderiam ser deferidos depois da extinção desta. Tratava-se, portanto, da outorga de direitos, que mesmo assim foi reputada incabível. Aqui, ao contrário, tem-se norma punitiva, que com maior razão atrai a lógica do precedente.

Como já dito, a MP 320/2006 era favorável ao administrado, reduzindo as exigências para a delegação de serviços públicos (de concessão para mera autorização). Isso levou os Ministros Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux e Ricardo Lewandowski a, preocupados com a isonomia, votarem pela extensão dos efeitos do diploma quanto aos pedidos protocolados mas não decididos durante a sua vigência. A relevante objeção — que sensibilizou inclusive Ministros integrantes da maioria, como Dias Toffoli e Gilmar Mendes — não teria cabimento aqui. Primeiro porque não há princípio jurídico que predique a incidência de norma punitiva após o fim da sua duração, salvo nas hipóteses de lei excepcional ou temporária (Código Penal, artigo 3º). E depois porque, até onde se sabe, não houve nenhuma decisão administrativa final impondo multa majorada durante a vigência da MP 772, o que afasta qualquer cogitação fundada no princípio da igualdade.

O Executivo editou a regra, e o Legislativo tacitamente a rejeitou. Pretender aplicá-la para além dessa recusa é sobrepor a vontade do Presidente à decisão soberana do Congresso — vontade que, vale acrescentar, sequer subsistiu, pois a medida provisória foi logo depois revogada por outro ato de igual natureza.

Mesmo que a MP 772 pudesse embasar atos administrativos após o fim de sua vigência, a natureza da regra veiculada imporia o seu próprio afastamento em favor da multa primitiva, que, tendo voltado a vigorar, retroage por ser mais benéfica. De fato, apesar de consagrar a irretroatividade como padrão (artigo 5º, inciso XXXVI), a Constituição impõe a retroação da lei penal mais branda (artigo 5º, inciso XL), comando cujo alcance a doutrina4 e a jurisprudência5 estendem às normas sancionadoras em geral. Deveras, que sentido haveria em negar a condutas menos graves favor que se outorga àquelas que merecem a repulsa máxima do ordenamento?

Por fim, rejeitadas as duas teses acima, ter-se-ia de reconhecer ultratividade não só à MP 772, mas também à MP 794, que a revogou e que também se extinguiu por decurso de prazo, sem a edição de decreto legislativo. A eficácia temporal das medidas provisórias original e revogadora, bem como da lei anterior quando rejeitadas ambas as MPs, é analisada por Bernardo Gonçalves Fernandes6 e Alexandre de Moraes7, em lições que reverberam firme jurisprudência do STF, iniciada na ADI 221-MC/DF (Pleno, Relator Ministro Moreira Alves, DJ 22.10.93) e reiterada, entre tantas outras, na ADI 1.214-MC/DF (Pleno, Relator Ministro Néri da Silveira, DJ 01.12.95) e na ADI 1.370-MC/DF (Pleno, Relator Ministro Ilmar Galvão, DJ 30.08.96).

O que os citados doutrinadores não esclarecem é a eficácia definitiva de ambas as medidas provisórias, se rejeitadas ou decaídas sem a edição de decreto legislativo. Que ao cabo a lei anterior volta a vigorar, como adverte o primeiro, é hoje ponto bem estabelecido. Que o texto de cada uma delas prevalece durante a respectiva vigência, como anotam ambos os juristas, é também pacífico. Mas, após implementadas aquelas condições, esses efeitos se consolidam ou se apagam retroativamente?

Os precedentes optaram pela segunda solução, o que era compatível com a redação original do artigo 62 da Constituição, segundo a qual “as medidas provisórias perderão eficácia desde a edição, se não convertidas em lei” no prazo ali fixado. Essa conclusão, contudo, cede o passo ante a redação atual do comando, segundo a qual “as medidas provisórias, ressalvado o disposto nos parágrafos 11 e 12, perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei...” – sendo o parágrafo 11, como se sabe, aquele que, à míngua de decreto legislativo, preserva os efeitos desencadeados pela MP durante a sua vigência.

Assim, caso se entenda pela exigibilidade de multa majorada quanto a fatos ocorridos sob o pálio da MP 772, força será concluir – ante o princípio da legalidade geral, sancionatória e administrativa, que impede a inflição de multa sem lei que a comine – que estes são somente os verificados antes da edição da MP 794, pois a mesma regra constitucional que determinaria a aplicação do primeiro diploma determinaria também, pelas mesmas razões, a aplicação deste último quanto ao período em que vigeu.

O tema, de relevantes repercussões jurídicas, econômicas e sociais, é objeto de arguição de descumprimento de preceito fundamental protocolada hoje no STF.

Esta coluna contou com a decisiva participação de Marco Antonio Cintra Gouveia.

 

1 “Art. 62, § 3º. As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)

(...)

§ 11. Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)”

2 “Art. 2º, § 1º. As multas previstas neste artigo serão agravadas até o grau máximo, nos casos de artifício, ardil, simulação, desacato, embaraço ou resistência a ação fiscal, levando-se em conta, além das circunstâncias atenuantes ou agravantes, a situação econômico-financeira do infrator e os meios ao seu alcance para cumprir a Lei.”

3 Trata-se do Decreto 9.013/2017, instituidor do Rispoa (artigos 508 e 509).

4 Gustavo Binenbojm. Poder de Polícia, Ordenação, Regulação: Transformações Político-Jurídicas, Econômicas e Institucionais do Direito Administrativo Ordenador. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 105

5 STJ, 1ª Turma, REsp. nº 1.602.122/RS, Relatora Ministra Regina Helena Costa, DJe 14.08.2018; STJ, 3ª Seção, AR nº 1.304/RJ, Rel. para o acórdão Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe 26.08.2008. STJ, 1ª Turma, REsp. nº 1.602.122/RS, Relatora Ministra Regina Helena Costa, DJe 14.08.2018; STJ, 3ª Seção, AR nº 1.304/RJ, Rel. para o acórdão Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe 26.08.2008.

6 Curso de Direito Constitucional. 10 Ed. Salvador: JusPODVIM, 2018. p. 1.169.

7 Direito Constitucional. 35. ed. São Paulo: Atlas: 2019, p. 737.

Igor Mauler Santiago é sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

Revista Consultor Jurídico