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Notícias Tributárias

Risco fiscal: ações com perda provável contra União crescem 410% e somam R$ 660 bi

A polêmica em torno do uso de parte dos pagamentos dos precatórios federais para custear um programa social amplo desvelou o expressivo aumento no valor desembolsado pela União para pagamento de precatórios nos últimos anos, que saltou de R$ 13 bilhões para R$ 55 bilhões de 2010 a 2021. Para além dos precatórios, o governo federal também se preocupa com uma conta trilionária em disputas jurídicas que envolvem o governo de maneira direta (com a União sendo parte do processo) ou até indireta (mudança de regras que impactem a arrecadação, por exemplo).

Segundo dados do Ministério da Economia, de 2018 para 2019, o risco fiscal de ações judiciais que podem causar impacto para a União saltou de R$ 1,64 trilhão para R$ 2,20 trilhões.

O valor se mostra preocupante, principalmente, porque a União elevou sua provisão para possíveis perdas nos litígios. O governo usa três classificações para os processos: remoto, possível e provável. O risco fiscal de perda provável saltou de R$ 117 bilhões em 2018 para R$ 664 bilhões em 2019.

De acordo com o Anexo V do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias enviado ao Congresso, esse aumento pode ser explicado pela atualização de critérios de classificação de risco possível e provável das ações judiciais por conta de duas portarias da AGU, que atenderam recomendações do Tribunal de Contas da União: nº 318/2018 e nº 514/2019.

Na ocasião, o TCU determinou que quando a probabilidade de um evento ocorrer for maior do que a probabilidade de ele não ocorrer, esse evento é considerado como provável. A Corte interpretou que, anteriormente, a União classificava isso como possível.

“O resultado da aplicação da nova portaria [na versão de 2018] indica o contrário, pois ações já julgadas no mérito, apenas dependentes de julgamento de embargos de declaração, estão classificadas como sendo apenas possível a concretização do evento”, segundo o acórdão.

Na PEC do Pacto Federativo, enviada pela equipe econômica ao Congresso Nacional no final de 2019, o governo até sugeriu incluir um dispositivo na Constituição para dispor que “decisões judiciais que impliquem despesa em decorrência de obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa somente serão cumpridas quando houver a respectiva e suficiente dotação orçamentária”. O texto segue em tramitação no Senado.

As ações com possíveis perdas listadas pela União variam de processos no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ), e são divididas pelo órgão que representa a União no Judiciário.

Por vezes, a defesa é feita pela Procuradoria-Geral Federal, pela Advocacia-Geral da União (AGU), pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) ou pela Procuradoria-Geral do Banco Central (PGBC).

Principais processos

Na lista, o principal caso de impacto citado pela União é um recurso especial (RESP 1.221.170) no qual se questiona o creditamento de insumos na base de cálculo do PIS e da COFINS, para fins de abatimento de crédito do valor a ser pago do imposto no regime não cumulativo. Em cinco anos, o impacto fiscal seria de R$ 472 bilhões.

Outro processo listado é um recurso extraordinário (RE 607.642) que questiona a constitucionalidade das Medidas Provisórias 66/02 e 135/2003, as quais inauguraram a sistemática da não cumulatividade das contribuições para o PIS e a COFINS, com a consequente majoração da alíquota associada à possibilidade de aproveitamento de créditos compensáveis para a apuração do valor efetivamente devido. Em cinco anos, o impacto de uma perda poderia chegar a R$ 281 bilhões.

Também é listado um litígio de impacto se refere a recursos especiais (ARE 884.325 e RESP 1.347.136/DF) relacionados ao setor sucroalcooleiro, em litígios sobre uma possível responsabilidade objetiva da União por dano causado ao setor em virtude da fixação dos preços dos produtos do setor em valores inferiores ao levantamento de custos realizados pela Fundação Getúlio Vargas. Os impactos seriam de R$ 107 bilhões.

Entre as ações listadas, o governo também cita um recurso extraordinário que debate prescritibilidade do ressarcimento ao erário na fase de execução após acórdão proferido pelo Tribunal de Contas da União, com um impacto de R$ 7,3 bilhões.

Em relação às 17 empresas estatais dependentes da União, os litígios de natureza trabalhista, cível, previdenciário e tributário chegam a R$ 4 bilhões. Já em relação ao Banco Central, ações de risco possível totalizam R$ 6,3 bilhões.

“Além do caráter probabilístico da natureza destas ações judiciais, há de se considerar as características próprias dos trâmites jurídicos, como, por exemplo, pendências de julgamento final, possibilidade de recursos em instâncias superiores, dificuldade de previsão de tempo e valor das causas”, assina a equipe econômica no anexo da PLDO.

Dessa forma, o governo destaca que estas características impõem uma avaliação e interpretação cautelosa dos valores apontados como passivos contingentes de ações judiciais. Sendo assim, o valor de perda pode ser ainda maior.

‘Insegurança jurídica’

O economista Leonardo Ribeiro, que é analista do Senado Federal, avaliou que o crescimento no risco fiscal decorrente de decisões judiciais evidencia a insegurança jurídica que há no Brasil, principalmente entre contribuintes, dado o valor de ações tributárias.

Somente em ações fiscais no STF, segundo os dados do Ministério, o risco fiscal chega em R$ 782 bilhões. No STJ, os litígios somam R$ 560 bilhões.

Nesse sentido, ele lembra que, do valor, nem tudo entrará diretamente como precatórios, já que há ações nas quais a União não é polo passivo nos processos. Por outro lado, ele lembra que, a depender do resultado de um julgamento, pessoas físicas ou empresas podem questionar a União judicialmente. Dessa forma, portanto, seria gerado um precatório.

A forte alta nos valores considerados como perdas prováveis, somado à elevação nos precatórios, considerou Ribeiro, compromete o orçamento público do governo, já que, com um “susto”, a União pode ser obrigada a realizar determinada despesa ou abrir mão de uma receita, a depender do Judiciário.

Dessa forma, Leonardo Ribeiro disse que é necessário estabelecer uma espécie de compliance no setor público, para que se possa tomar decisões mitigando possíveis questionamentos judiciais no futuro. Além disso, ele considera que é necessário um decreto para regulamentar dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal, como o que cria uma reserva de contingência para passivos futuros.

O economista lembra que o valor deve ser analisado com lupa dado o forte comprometimento que pode causar às finanças públicas. Nesse sentido, a Instituição Fiscal Independente (IFI) foi criada, em 2016, com um dos seus intuitos para “mensurar o impacto de eventos fiscais relevantes, especialmente os decorrentes de decisões dos Poderes da República, incluindo os custos das políticas monetária, creditícia e cambial”.

Inconstitucionalidade

O consultor legislativo do Senado Federal Vinicius Amaral, que é especialista em Direito Financeiro, avalia que a proposta de incluir no Pacto Federativo um dispositivo para executar uma decisão judicial somente quando houver reserva orçamentário “parece inconstitucional”.

“Entre outros motivos, por fragilizar a proteção aos direitos sociais, ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. É, aliás, a generalização sem limites da já abandonada proposta de restringir os pagamentos de precatórios”, disse Amaral ao JOTA.

Nos dois casos, disse, “vemos que o governo está mirando apenas a etapa final do processo: o desembolso financeiro”. “Mas o correto é agir preventivamente, reduzindo o risco de litígios judiciais”, considerou.

Para isso, o consultor defende que o Estado tem que pautar a sua ação pela promoção à segurança jurídica, se abstendo de atos que possam afetá-la.

“Infelizmente, não é o que estamos vendo: recentemente, por exemplo, foi noticiado que o governo não submeteu o texto final da PEC da reforma administrativa à análise dos órgãos jurídicos competentes. Todos que tiveram contato com o texto puderam verificar as inúmeras falhas de técnica legislativa resultantes desse descuido”, criticou o consultor

Outro exemplo, disse, a proposta de redução de jornada e remuneração dos servidores públicos, que contrariaria precedentes do STF.

“Tudo isso gera insegurança jurídica e poderá resultar em incontáveis ações judiciais, que virão a se somar a esse já gigantesco estoque e no futuro onerar pesadamente os cofres públicos”, falou o consultor.

Fonte: Jota